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A força do roteiro

A força do roteiro

Não é habitual aqui no blog eu me dedicar a escrever um post sobre alguém, uma personalidade, seja da literatura, do cinema, de corrida ou de qualquer outra “área”. Principalmente por que me sinto mais à vontade ao discorrer sobre uma obra do que sobre uma pessoa. Sem ser totalmente uma exceção à regra, este post é sobre Alexander Payne ou, mais especificamente, sobre seus filmes – e ainda mais especificamente sobre seus roteiros.

Num impulso motivado por tê-los visto numa vitrine, dias atrás resolvi assistir a alguns filmes indicados ao Oscar que eu ainda não tinha tido a oportunidade de ver. Tio Torrent me ajudou e baixei vários, mas assisti a apenas dois até agora. Um deles – Extremely loud and incredibly close – já tem um Drops no blog. O outro – The descendants -, apesar de eu ter gostado bem mais, por alguma razão que não consigo me recordar agora, não “mereceu” um texto. O que é de se estranhar, já que tenho alguns comentários a tecer sobre ele que eu considero relevantes.

the descendants

Antes de continuar falando sobre o filme que me estimulou a escrever este post, uma breve sinopse.

Matt King (George Clooney), um marido indiferente, pai de duas garotas, é forçado a reexaminar seu passado e abraçar seu futuro quando sua esposa sofre um grave acidente em Waikiki. O ocorrido exige uma reaproximação com suas filhas adolescentes, enquanto Matt se debate com a decisão de vender as terras que estão na família desde os tempos da realeza havaiana e dos missionários.
(fonte: site Os Descendentes – www.osdescendentes.com.br)

O elenco está muito bem, bastante coeso. Não há uma interpretação excepcional e/ou inesquecível, mas a empatia entre eles faz com que todas as performances sejam bem verossímeis e convincentes. Não sei se é crédito apenas do diretor ou se o ator também se esforçou para tal, mas até mesmo Clooney, em boa parte do filme, deixa de lado aquela sua cara de cachorro pidão que sempre foi sua marca característica. Foi bom rever Beau Bridges (como Hugh, primo de Matt) – há algum tempo afastado das telas – mesmo que numa pequena participação. E as intervenções de Robert Forster (como Scott Thorson, sogro de Matt) vão de dramáticas a cômicas de modo bastante fluido. Até mesmo o núcleo adolescente – as filhas de Matt, mais um “amigo”, Sid (Nick Krause) – consegue não ser infantilóide ou clichê.

Quanto à fotografia, Phedon Papamichael fez um bom trabalho. Nas cenas externas, certamente foi favorecido pelas paisagens do Hawaii. Mas conseguiu que as belezas naturais não sobrepujassem e, consequentemente, não desviassem a atenção do público do que realmente interessava. Mesmo quando a locação era o foco da narrativa – como quando Matt visita as terras que pertencem à sua família – a colaboração de Payne e Papamichael consegue criar um contraponto interessante entre a beleza da paisagem e o drama vivido pelos personagens. Interessante notar que apesar de todos pensarem no Hawaii como um local ensolarado e cheio de vida, praticamente todas as externas foram feitas em dias nublados. E consegue a proeza de ser intimista em vários momentos, apesar da imensidão da paisagem.

Não é uma super produção. Não é um blockbuster. Não é um filmaço, daqueles que, após assistir, insistimos em indicar a todos nossos conhecidos. Mas é um filme memorável, daqueles que recordaremos quase com carinho anos após tê-lo assistido pela primeira vez. E o motivo disso, no meu entender, é essencialmente a qualidade do roteiro. Não estou desmerecendo o elenco, a direção, a fotografia, enfim, todo o “entorno” do filme. Contudo, neste caso, o roteiro é o maior trunfo. Não foi à toa que levou a maioria dos prêmios a que foi indicado. Lógico que nada é perfeito e há, no filme, algumas situações bem improváveis, mas que não tiram o mérito do todo. * SPOILER ALERT * Como quando Matt cisma de encontrar o amante da esposa para avisá-lo da condição dela e “permitir” que ele se despeça antes que os aparelhos sejam desligados.

sideways - about schmidt

Assim que terminei de assistir, fui me informar sobre o roteirista, que também é o diretor. E descobri que era o mesmo de Sideways e About Schmidt, filmes que me deixaram com a mesma impressão ao final – de que eu os assistiria novamente de bom grado, mesmo já conhecendo a estória (About Schmidt um pouco menos que os outros). Hitchcock disse certa vez que “cinema é a vida sem as partes chatas”. E Payne consegue subverter essa afirmação. Suas estórias são simples, não há reviravoltas mirabolantes nem situações extremas. Seus personagens são “gente como a gente”, “the girl next door” como dizem os americanos, vivenciando situações comuns, que poderiam ocorrer a qualquer um de nós. E é a maneira como essas trivialidades do dia a dia são contadas que tornam a narrativa tão cativante. Pode-se até encarar esse característica de “ser comum” – não ordinário – dos personagens como um lembrete de sua insignificância ou, apelando para um clichê, de ser apenas mais um na multidão. Mas eu não vejo dessa forma.

Todos os filmes que citei até agora foram adaptados de livros homônimos:

  • About Schmidt, de Louis Begley
  • Sideways, de Rex Pickett
  • The descendants, de Kaui Hart Hemmings

Isso de modo algum tira o mérito do(s) roteiristas(s), uma vez que a transposição de uma mídia para a outra requer bastante habilidade. Não basta apenas transcrever os diálogos e “tirar do papel” os cenários. O roteirista, nesses casos, costuma ser bem sucedido caso consiga manter a essência da obra literária e dos personagens e, ao mesmo tempo, transpôr a estória para uma nova estrutura sem “perder” muito, ainda que seja preciso tomar algumas liberdades criativas. Não li nenhum deles. Não sei se são muitos bons, bons ou apenas medianos. Não posso afirmar se, nos livros, os personagens são mais ou menos complexos do que o que se vê na tela. Ou se a narrativa é mais ou menos envolvente. Independente disso, o resultado na tela foi bastante satisfatório.

UntitledQualquer pessoa que tenha interesse por estrutura literária ou cinematográfica conhece ou, ao menos, já ouviu falar sobre a jornada do herói ou monomito. Tanto faz se de Campbell ou Vogler, já que a estrutura macro é bastante similar. O que é relevante aqui é que uma boa estória (seja livro ou roteiro), na maioria das vezes, segue essa estrutura. E um bom filme, ou melhor, um bom roteiro pode ser assim considerado quando a jornada está lá, mas não fica “escancarada” para o espectador. Comentei neste post sobre o incômodo causado ao assistir um filme em que isso era explícito demais. Contudo, os filme de Payne são bem sucedidos nesse sentido. Percebemos a jornada, os arquétipos, mas é tudo tão sutil que faz o espectador embarcar na estória (quase) sem ressalvas.

E o gosto, ou a preocupação, de Payne em analisar o comum, o ordinário reflete-se na escolha dos livros a serem adaptados. Em todos eles, há um protagonista – um homem comum, cercado de pessoas comuns – que é forçado a sair de sua zona de conforto por algum evento inesperado ou simplesmente fora da rotina. E, coincidentemente, o que se segue é uma viagem ou , mais poeticamente, uma jornada. Schmidt (Jack Nicholson) enviúva, põe o pé na estrada com seu trailer no intuito de impedir que sua filha se case. Miles (Paul Giamatti em Sideways) pega a estrada pelos vinhedos californianos com seu melhor amigo Jack (Thomas Haden Church), que se casará em alguns dias. Matt (Clooney) que, acompanhado das filhas e de um amigo delas, viaja para visitar as terras da família ao mesmo tempo que parte numa “missão” (citada no spoiler acima).

Acredito que o enfoque no “ser comum” seja responsável por gerar tamanha identificação do espectador com o filme. Afinal não somos todos pessoas comuns, vivendo situações comuns, sendo eventualmente confrontados com algo inesperado que requer de nós uma decisão, um crescimento interior, uma jornada?

george clooney

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