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"Shall we begin?"

"Shall we begin?"

Funny games (2007)
Roteiro e direção Michael Haneke

O filme foi citado pelo Pablo Villaça (@pablovillaca) durante o curso de “Linguagem e Crítica Cinematográfica”. Na ocasião, eu não sabia, mas já tinha assistido a outro filme deste diretor – Caché, do qual gostei bastante; incomum, mas bastante instigante e cativante a um só tempo (post aqui). E, ao dar check-in no getGlue, descobri que este, de 2007, é a versão americana de um filme produzido originalmente na Áustria, em 1997, também dirigido por Haneke. Aliás, não é uma versão, é uma refilmagem praticamente quadro a quadro do original.

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Já comentei em outros posts sobre escolhas “infelizes” dos títulos em português. Infelizmente, como em outras vezes, o título deste – “Violência Gratuita” (assim como a imagem em alguns dos cartazes) é, em si, um spoiler. Sei que estou me repetindo, mas é algo que realmente me incomoda. Perde-se o impacto de perceber qual a real intenção dos educados rapazes. Priva-se o espectador de ser surpreendido e desfrutar plenamente do filme, como provavelmente foi pensado pelo diretor. Mas como, nos dias de hoje, dificilmente alguém assiste a algo sabendo pouco ou quase nada sobre o que está vendo, é uma perda quase calculada (principalmente neste caso, por se tratar de uma refilmagem).

Mesmo sem o elemento surpresa sobre o intuito deles, fica a tensão de como e quando suas intenções serão reveladas. Inadvertidamente, gera-se um suspense que serve ao desenrolar da trama quase tão bem quanto se soubéssemos tanto quanto os personagens, ou melhor, se também ignorássemos o que está por vir.

Ainda não assisti ao primeiro, mas acredito ter sido muito importante que o próprio Haneke tenha sido responsável pela refilmagem. Certamente a essência do filme teria se perdido caso outro diretor mais “comercial” tivesse assumido a direção. Trata-se da estória de uma família em férias (pai, mãe, filho pré-adolescente) que é feita refém por dois jovens, durante um final de semana. A partir dessa premissa, Haneke faz uma análise apurada da violência e suas razões e implicações.

A não ser por uma pista – uma pista sonora – no início do filme, nada nos prepara para o que será vivenciado após o primeiro terço da exibição. A cena inicial não poderia ser mais trivial. Família no carro a caminho de sua casa de campo, passando o tempo brincando de adivinhar nome e autor de músicas eruditas. Abruptamente, os acordes de “Care selve” (da ópera Atalanta, de Handel) são sobrepostos por um heavy metal daqueles bem dissonantes(“Naked city”, Bonehead), enquanto os créditos são exibidos. Um prenúncio de que aquela paz e tranquilidade seriam em algum momento substituídas por algo diametralmente oposto. (Spoiler à frente) Assim como o inocente jogo de adivinhas entre Ann (Naomi Watts) e George (Tim Roth) será substituído por outro bem mais mordaz e cruel entre Paul (Michael Pitt) e George.

Interessante notar que, apesar do uso desses dois estilos musicais na introdução do filme, não há trilha sonora. Fato que enfatiza o caráter incomum da obra. Fazendo o espectador sentir-se ainda mais incomodado devido à ausência do conforto sonoro a que está habituado. A sensação de estar presenciando algo real é intensificada, já que “na vida real” não há música conduzindo a emoção do público. (Spoiler à frente) Mesmo a música que toca enquanto Paul persegue Georgie (o filho), não é trilha sonora, faz parte do universo do filme, pois é Paul que liga o aparelho de som.

funny-games-brady-corbet12[1]Algo que chama a atenção logo na primeira aparição de um dos rapazes é o figurino deles. Roupas, calçados inclusive, impecavelmente brancas. E, detalhe intrigante, ambos calçam luvas, também brancas. A princípio, o espectador se indaga por que dois jovens, no campo, estariam trajados assim. Parte da resposta é dada logo que a família chega à casa, e um dos vizinhos vem acompanhado de um deles. Aparentemente, esses seriam seus trajes para a prática de golfe, o que explicaria também as luvas. É quase certo que seja uma “gag” visual do diretor. Humor sim, humor negro. Fazendo uso de uma figura de linguagem para exemplificar, poderíamos defini-la como uma antítese visual. Quase uma quebra de expectativa. Assim como em outros momentos do filme, o diretor parece debochar das nossas certezas, fazendo-nos lembrar que as coisas nem sempre são o que parecem ser. (Spoiler à frente) Note-se que Peter (Brady Corbet) não está totalmente de branco. Esse pormenor é um indício de que o caráter do personagem difere um pouco do de Paul, como se percebe nas atitudes distintas de ambos enquanto torturam a família.

Um detalhe curioso é que em vários momentos, o diretor quebra propositalmente o limite do espaço fílmico. Faz o espectador perder o efeito da imersão na narrativa, quando Paul conversa diretamente com a câmera – consequentemente, com quem assiste. Mas mesmo isso serve ao propósito do filme, que é fazer o espectador se questionar sobre o que está vendo, sobre a violência e suas causas. Ao ser questionado diretamente pelo personagem, o espectador sente-se impelido irremediavelmente a ter um posicionamento, uma opinião sobre o assunto, pois nossa reação natural é querer responder ao personagem já que ele dirige-se diretamente a nós. Essa interação com o espectador tem a clara intenção de torná-lo cúmplice do que vê na tela. E, ao invés de afastá-lo do universo diegético, consegue, de maneira brilhante, incorporá-lo a ele.

funny-games-us-04[1]Outro recurso narrativo utilizado algumas vezes por Haneke é o da pista e recompensa. Pequenos detalhes e cenas (aparentemente) não essenciais à trama que adquirem sentido no decorrer do filme. Sempre que me deparo com a utilização desse recurso, pergunto-me qual a intenção do diretor: suspense ou surpresa. E neste filme não foi diferente. Explico-me melhor. Entendo que haja duas possibilidades: perceber a pista e aguardar pela recompensa; ou ser surpreendido pela recompensa, compreendendo algo que inicialmente passara despercebido. Eu, como espectadora, experimento sensações diferentes mas igualmente gratificantes independente de ocorrer uma ou outra situação.

(Spoilers à frente) Vale notar que apenas um ato de violência é praticado em frente à câmera. Todos os demais ocorrem fora de quadro. Apenas ouvimos, inferimos o que está acontecendo e vemos, em seguida, os “resultados” do que ocorreu fora de nossas vistas. A única cena dentro de quadro é, significativamente, a que proporciona catarse ao público. No entanto, acredito que a intenção do diretor tenha sido jogar na nossa cara que somos facilmente manipuláveis quanto aos nossos princípios. O espectador, que até então condenara a violência praticada, regozija-se ante o ato que vitima o vilão. Vem à tona a hipocrisia do público. Que, em seguida, sente-se irado ao perceber a manipulação de que foi alvo.

Tanto o emprego da música clássica quanto a cor dos figurinos dos rapazes remetem a um outro filme com a mesma temática, “A Clockwork Orange”, dirigido por Stanley Kubrick. Em ambos, o espectador é levado a pensar sobre e questionar a banalização da violência. Mas, apesar disso, fica a impressão de que o intuito de Haneke é, na verdade, exibir sua capacidade de manipular a audiência. Independente de qual seja sua intenção, é um filme impactante. Causa desconforto suficiente em quem assiste, a ponto de querer, ou melhor, ter necessidade de comentar o que foi visto. Sob esse ângulo, a obra atinge plenamente o objetivo de impressionar o espectador. E isso não é pouca coisa.

3 Comments

  1. Muito bom, como de costume, e concordo com as semelhanças com Laranja Mecânica, há um filme de horror, não lembro o nome agora, que aborda a mesma temática, casal chega a uma casa em um subúrbio americano e se torna alvo de uma situação semelhante, neste caso há uma suspeita de algo sobrenatural em ação.

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